EU APRENDI A LER



EU APRENDI A LER



Olha gente, eu aprendia ler e, isto me despertou a curiosidade e comecei a ler tudo que encontrava pela frente, até que deparei com um livrinho que falava de mim. Imaginem! Um livro só meu, e o engraçado é que falava de coisas que eu tenho direito. Exemplo: meus pais tinham o direito de serem assistidos, antes e depois que nasci; que tenho o direito à saúde, a educação, com escola especializada, com acompanhamento técnico; que tenho direito a passe livre em transporte coletivo, isto, garantindo mais um direito que também tenho, o de ir e vir, facilitando, assim, o meu acesso a educação e a saúde; que posso me profissionalizar, trabalhar; e que as empresas são obrigadas a me dar emprego e que as construções tem que serem feitas com adaptações especiais para mim; a ser socializado e inserido à sociedade.
Não sabia muito bem o que era sociedade, mas fui procurar agora, eu sabia ler, e lá dizia que sociedade era formada por todos os habitantes de um país, que eram unidos, se protegiam e se amparavam, mas não foi bem isto que encontrei. Encontrei uma sociedade egoísta, onde cada um só pensava em si. Me ajustaram para algo que não tem ajuste, pois vocês acham ajustada uma sociedade que precisa de uma lei para não ter preconceito, quando o preconceito está em lugar inatingível pela lei, está no pensamento, querem preconceito maior do que a indiferença, o descaso, ou os atos  não ferem, só as palavras. Vocês acham justa uma sociedade que precisa de lei para garantir os direitos humanos, quando basta que se cumpra os deveres humanos, os direitos estarão garantidos. Olha, eu gostava mais da sociedade quando eu não sabia ler.
Então, fui procurar os poderes constituídos. Demoraram a me receber e, quando receberam, disseram que não era nada disso, eu tinha entendido errado, não era bem isto e que as leis são complicadas, então, voltei ao livrinho e descobri que eram eles que tinham me prometido tudo e, que agora se negavam a me ajudar a conseguir. Então resolvi ir a lei, mas antes de chegar lá, soube que ela também tem deficiências, é morosa, tem dificuldade de interpretação, não grava fatos, só fotos e só trabalha com seqüências de flagrantes delitos, casos isolados como o meu passam despercebidos, mas ainda me resta a mãe suprema . Mas foi aí que descobri que não basta eu ter aprendido a ler, entendi tudo errado. O livrinho, a sociedade, os poderes constituídos, a lei e o que soube agora da mãe suprema, desisto. Não vou procura-la, pois a mãe suprema a quem me refiro é a Justiça e eu li em algum lugar, não sei onde que ela é cega, não vai me ver.
                                           Ady Alves